domingo, 4 de dezembro de 2011

DA SOLIDÃO - Cecília Benevides de Carvalho Meireles



Há muitas pessoas que sofrem do mal da solidão. Basta que em redor delas se arme o silêncio, que não se manifeste aos seus olhos nenhuma presença humana, para que delas se apodere imensa angústia: como se o peso do céu desabasse sobre a sua cabeça, como se dos horizontes se levantasse o anúncio do fim. No entanto, haverá na terra verdadeira solidão? [...] Tudo é vivo e tudo fala, em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas, mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. [...]
Oh! se vos queixais de solidão humana, prestai atenção, em redor de vós, a essa prestigiosa presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversará convosco interminavelmente.

MEIRELES, Cecília. Da solidão. In: Escolha o seu sonho. São Paulo: Círculo do Livro, 1974, p. 39-42.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

AS CIDADES CONTÍNUAS I

A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias: a população acorda todas as manhãs em lençóis frescos, lava-se com sabonetes recém-tirados da embalagem, veste roupões novíssimos, extrai das mais avançadas geladeiras latas ainda intatas, escutando as últimas lengalengas do último modelo de rádio.
Nas calçadas, envoltos em límpidos sacos plásticos, os restos de Leônia de ontem aguardam a carroça do lixeiro. Não só tubos retorcidos de pasta de dente, lâmpadas queimadas, jornais, recipientes, materiais de embalagem, mas também aquecedores, enciclopédias,pianos, aparelhos de jantar de porcelana: mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. Tanto que se preguna se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o fato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente. O certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e a sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeito sileencioso, como um rito que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas. (...)
O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e lustros. (...)

CALVINO, Ítalo. As cidade contínuas I. In:______. As cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. Rio de Janeiro: O Globo/ Folha de são Paulo, 2003, p. 109-110.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

COISAS QUE VÊM NA SORTE - Cecília Benevides de Carvalho Meireles


Acredito nos fatos mágicos. Sinto que andamos todos entre mistérios. Entre vultos que não aparecem. Executando ações incompreensíveis. Dizendo só metades de pensamentos. Construindo só pedaços de nossa história.
Pode ser que algum dia venha uma sombra mais sábia, e me leve consigo, por um caminho que ainda não descobri.
E a tua lembrança iria como a ponta de um manto ligando os passos que vão para a frente com o chão que ficou para trás. E o gosto da tristeza seria um anel envenenado na minha boca. de modo que eu não pudesse cantar. Nem falar. Nem sorrir.
***
Mas estou persuadida de que ir ou ficar é o mesmo. Não creio nos tempos. Não creio nos lugares. Não creio nas coisas. Não creio em ninguém. Talvez em mim, unicamente e levemente.
Tudo isto apenas porque sucedeu ficares de olhos fechados. Quem diria! e, ainda que agora os abrisses, tudo seria como está.
Por isso, desconfio que, se alguma sombra vier, eu é que lhe falarei brandamente, com uma linguagem sugestiva: "Não me leves, não. Estou muito feliz aqui. Até o fim dos horizontes, não há nada que me seduza. Nem do outro lado da terra. Nem mesmo acima do céu."

MEIRELES, Cecília. Coisas que vêm na sorte. In:______. Episódio Humano. Rio de Janeiro: Desiderata/ Batel, 2007, p. 88-89.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

DESENHOS DE SETEMBRO - Delvanir Lopes

Delvanir (Reghini) Lopes - giz de cera sobre canson

Delvanir (Reghini) Lopes - giz de cera/ nanquim sobre papel texturizado

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

ORACIÓN - Rabindranath Tagore

 

Señor: que yo nunca rece para ser preservado de los peligros, sino para alzarme ante ellos y mirarlos cara a cara.
Que no pida la extinción de mi dolor, sino el coraje que me falta para sobreponerme a él.
Que no confíe en aliados en la guerra de la vida sobre el campo de batalla del alma: que sólo espere de mí.
Que no implore, espantado mi salvación, que tenga la fe necesaria para conquistarla.
Dame no ser ingrato: pues a tu misericorida debo mis triunfos.
Y si sucumbo, acude a mí con tu brazo fuerte. Y dame la paz, y dame la guerra!


Rabindranath Tagore

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

VIVER NÃO DÓI



Viver não dói. o que dói

é a vida que não se vive.

Tanto mais bela sonhada,

quanto mais triste perdida.


Viver não dói. O que dói

é o tempo, essa força onírica

em que se criam os mitos

que o próprio tempo devora.


Viver não dói. O que dói

é essa estranha lucidez,

misto de fome e de sede

com que tudo devoramos.


Viver não dói. O que dói

ferindo fundo, ferindo,

é a distãncia infinita

entre a vida que se pensa

e o pensamento vivido.


Que tudo o mais é perdido.


MOURA, Emílio.Itinerário Poético: poemas reunidos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 111.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

UM CANTO DO MUNDO - Delvanir Lopes

https://jpn.up.pt/2012/03/10/porto-velharias-e-antiguidades-um-negocio-de-paixoes/


Deixa-me no meu canto:

canções velhas, vozes antigas que ressoam poeira,

mundo sem chaves, passado sem presente,

todo espera.


Deixa-me no meu mundo:

para que o sonho momentâneo seja eterno,

para que a lágrima sem porquê

e os olhos fechados

embalando o corpo em suaves voos

sejam o prenúncio do paraíso já perdido.


Deixa-me no meu mundo:

sentir vozes, ouvir aromas que não sei quais são,

que não vivi, mas que aprendi com eles a ser felicidade.


Deixa-me no meu mundo

para voltar rarefeito, recriado, alimentado

do que não morre, porque tornou-se para sempre vida.




Lopes, Delvanir . In. Voragem. Virtual Books:Pará de Minas (MG), p. 32-33.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

desenhos - Delvanir Lopes

Delvanir Lopes - giz de cera e esferográfica
junho 2011
Delvanir Lopes - autorretrato - pastel seco e giz de cera sobre canson junho 2011

Delvanir Lopes - pastel oleoso sobre canson

Junho 2011

sexta-feira, 27 de maio de 2011

PACTO DE ALMAS

I

PARA SEMPRE





Ah! Para sempre! para sempre! Agora
não nos separaremos nem um dia...
Nunca mais, nunca mais , nesta harmonia
das nossas almas de divina aurora.


A voz do céu pode vibrar sonora
ou do Inferno a sinistra sinfonia,
que num fundo de astral melancolia
minh'alma com a tu'alma goza e chora.


Para sempre está feito o augusto pacto!
Cegos seremos no celeste tato,
do Sonho envoltos na estrelada rede,

E perdidas, perdidas no infinito
as nossas almas, no clarão bendito,
Hão de enfim saciar toda esta sede...


Cruz e sousa. Pacto de almas. In. _____.Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1982, p. 92-93.

terça-feira, 5 de abril de 2011

I HAVE A DREAM

I have a dream, a song to sing to help me cope to anything


if you see the wonder of a fairy tale you can take the future even if you fail


I believe in angels, something good in everything I see


I believe in angels when I know the time is right for me


I 'll cross the stream, I have a dream.




I have a dream, a fantasy to help me through reality and my destination


makes it worth the while pushing through the darkness still another mile


I believe in angels, something good in everything I see


I believe in angels when I know the time is right for me


I 'll cross the stream, I have a dream.




ABBA


segunda-feira, 14 de março de 2011

INVULNERÁVEL




Quando dos carnavais da raça humana
forem caindo as máscaras grotescas
e as atitudes mais funambulescas
se desfizerem no feroz Nirvana;

quando tudo ruir na febre insana,
nas vertigens bizarras, pitorescas
de um mundo de emoções carnavalescas
que ri da Fé profunda e soberana;

vendo passar a lúgubre, funérea
galeria sinistra da Miséria,
com as máscaras do rosto desoladas;

tu que é o deus, o deus invulnerável,
resiste a tudo e fica formidável,
no silêncio das noites estreladas!


SILVEIRA, Tasso da (org.). CRUZ E SOUSA - poesia. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1986, p. 81-82.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

OUTONO


As folhas caem como se do alto
caíssem, murchas, dos jardins do céu;
caem com gestos de quem renuncia.

E a Terra, só, na noite de cobalto,
cai de entre os astros na amplidão vazia.

Caímos todos nós. Cai esta mãe.
Olha em redor: cair é a lei geral.

E a terna mão de Alguém colhe, afinal,
todas as coisas que caindo vão.


RILKE, Rainer Maria. Poemas e Cartas a um jovem poeta. Trad. Geir Campos. Rio de Janeiro: Technoprint Gráfica Editora, 1970, p. 40.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

FUTURO - Delvanir Lopes

Quando quarar o dia quero sair de mim;
quadrar o corpo, tal qual
aquele que quer, mas não sabe bem o quê.
E feliz, quebrantar qualquer quizita, querela.
Quite em estar aqui, loquaz porque quisto pela vida.
E quando cair a noite,
em quebreira contar
como quem revive a querência, quieto,
reconhecido,
acreditando no que virá.
.
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LOPES, Delvanir. Futuro. I. Voragem. Pará de Minas (MG): Virtualbooks, 2010, p. 27.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

HAI-KAI






Em meio da ossaria

Uma caveira piscava-me...

Havia um vagalume dentro dela.



QUINTANA, Mário. Hai-Kai. In. A vaca e o hipogrifo. São Paulo: Círculo do Livro, 1977, p. 19.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

MUNDO GRANDE - Carlos Drummond de Andrade



Não, meu coração não é maior que o mundo. 
É muito menor. 
Nele não cabem nem as minhas dores. 
Por isso gosto tanto de me contar. 
Por isso me dispo, 
por isso grito, 
por isso frequento os jornais, me exponho 
cruamente nas livrarias: 
preciso de todos. 

Sim, meu coração é muito pequeno. 
Só agora vejo que nele não cabem os homens. 
Os homens estão cá fora, estão na rua. 
A rua é enorme. Maior, muito maior que eu esperava. 
Mas também a rua não cabe todos os homens. 
A rua é menor que o mundo. 
O mundo é grande. 

Tu sabes como é grande o mundo. 
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. [...] 

Outrora escutei os anjos, 
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. 
Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre. 

Outrora viajei 
países imaginários, fáceis de habitar, 
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas 
e convocando ao suicídio. 

Meus amigos foram às ilhas. 
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia 
de que o mundo, o grande mundo está 
crescendo todos os dias, 
entre o fogo e o amor. 

Então, meu coração também pode crescer. 
entre o amor e o fogo, 
entre a vida e o fogo, 
meu coração cresce dez metros e explode. 


- Ó vida futura! nós te criaremos.


ANDRADE, Carlos Drummond de. Mundo Grande. In. Sentimento do Mundo. Rio de Janeiro: MediaFashion, 2008, p. 73-75