quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Limite sem limite - Delvanir Lopes





  

Sou o que passa,
repentinamente,
pelas cercas nas longas estradas,
pelos caminhos sem beiras,
pelos contornos de instantes se esfacelando,
continuamente.

Sempre passagem
- chegando e saindo -
deixo de ser livre para não ser prisioneiro.
Sempre ser e não-ser.
Sou o entre.

Decido pelo futuro - já foi.
Escolho a areia - a água invade.
Desejo a luz - há sombra.
Quero a lucidez - vem o enigma.
Cobiço a palavra - surge o silêncio.

No instante de vida, passo,
tudo passa:
depressa
e vagarosamente.

Na extremidade dessa linha
atravesso.

Limite sem limite.


Lopes, Delvanir. 
Limite sem limite. 
In Fímbria ou na morte da nossa hora. 
Pará de Minas/ MG: VirtualBooks, 2012, p 67.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

ECCE QUOMODO MORITUR JUSTUS - Jacobus Gallus Carniolus



Ecce quomodo moritur justus
et nemo percipit corde.
Viri justi tolluntur
et nemo considerat.
A facie iniquitatis
sublatus est justus
et erit in pace memoria eius:
in pace factus est locus ejus
et in Sion habitatio eius
et erit in pace memoria eius.


Vede como os justos morrem
e ninguém toma conhecimento.
Os justos são levados
e ninguém presta atenção.
De frente para a iniquidade
o justo é levado,
e sua memória estará em paz:
seu repouso é em paz
e sua morada em Sião,
e sua memória estará em paz.


Jacobus Gallus Carniolus
(Jacob Handl ou Jacob Handl-Gallus) (1550–1591)
trad. minha

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

NOCTILUZ - Delvanir Lopes

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Quando os últimos lumes apagarem suas velas
e pousarem, vagos, nas palavras já mortas ...
para sonhos e devaneios no silêncio,
as imagens serão memória.

Centelhas, pedaços de lembranças
apagando e acendendo, intermitentes,
em zigue-zagues,
repousarão nas negras árvores.

Antes que as palavras desistam de renascer
ou as ideias prefiram o esquecimento,
busque, na senda, a seta da clareira,
lá onde o fogo da luz passeia
até ser aspirado pelo corpo
e dar lume aos pensamentos.

Acenda a lanterna enquanto voa
e espalhe as fagulhas!
Que os mistérios da noite se desvelem
com sua alma iluminada
se inclinando sobre o silêncio dos campos,
dos cantos, das margens.


Noctiluz.




lopes, delvanir. noctiluz. in jardim de concisos. florianópolis: bookess, 2015, p. 45-46.

sábado, 5 de dezembro de 2015

RESÍDUO - Carlos Drummond de Andrade






De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ―  de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil…
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver… de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.





Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo

Rio de Janeiro: Record, p. 92-95