quarta-feira, 29 de julho de 2020

O espelho - João Guimarães Rosa (fragmento)



— Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

ROSA, João G. O espelho. In> ______.Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 122-123

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Simbolismo do "centro" - Mircea Eliade



[...]

O que distingue o historiador das religiões de um simples historiador é que ele lida com fatos que, embora históricos, revelam um comportamento que vai muito além dos comportamentos históricos do ser humano. Se é verdade que o homem sempre encontra numa "situação", nem por isso essa situação é sempre histórica, ou seja, unicamente condicionada pelo momento histórico contemporâneo. O homem integral conhece outras situações além da sua condição histórica. Conhece, por exemplo, o estado de sonho, ou de devaneio, ou o da melancolia ou do desprendimento, ou da contemplação estética, ou da evasão etc. - e todos esses estados não são "históricos", embora sejam, para a existência humana, tão autênticos e importantes quanto a sua situação histórica. Aliás, o homem conhece vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico, ou seja, seu próprio tempo, a contemporaneidade histórica. Basta ele escutar uma bela música, ou apaixonar-se, ou rezar, para sair do presente histórico e reintegrar o presente eterno do amor e da religião. Basta ele abrir um romance ou assistir a um espetáculo dramático para encontrar um outro ritmo temporal - o que poderíamos chamar tempo adquirido - que, em todo o caso, não é o tempo histórico.

[...]


ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26.

domingo, 12 de julho de 2020

Die Spitze - Rainer Maria Rilke




Menschlichkeit: Namen schwankender Besitze, 
 noch unbestätigter Bestand von Glück:
ist das unmenschlich, daß zu dieser Spitze,
zu diesem kleinen dichten Spitzenstück 
zwei Augen wurden? - Willst du sie zurück?

Du Langvergangene und schließlich Blinde, 
ist deine Seligkeit in diesem Ding,
zu welcher hin, wie zwischen Stamm und Rinde, 
dein großes Fühlen, kleinverwandelt, ging?

Durch einen Riß im Schicksal, eine Lücke
entzogst du deine Seele deiner Zeit;
und sie ist so in diesem lichten Stücke,
daß es mich lächeln macht vor Nützlichkeit..

 (RILKE, Rainer Maria. New poems. Translation by Len Krisak; With na Introdution by George c. Schoolfield. New York: Boydell & Brewer, 2015, p. 78-79) 


Humanidade: termo para algo sem dono
mas sempre cintilante em sua felicidade.
É desumano que um par de olhos
tenham se reduzido a esta pequena peça de renda tecida -
dois olhos que você gostaria de ter de volta?

Rendeira, você há muito tempo se foi (e cega):
e infundiu nessa renda a sua devoção;
como uma árvore, pressionada entre o tronco e a casca, encontra
o caminho, ainda com sua emoção inalterada e bem?

Através de uma brecha, um rasgo no destino,
você desenhou sua alma diretamente na história;
e agora está tão presente nessa renda,
que faz alguém feliz com a sua utilidade.

(tradução minha)

quarta-feira, 1 de julho de 2020

OS INVASORES - Mário Quintana



Há muito que os marcianos invadiram o mundo:
são os poetas
e
como não sabem nada de nada
limitam-se a ter os olhos muito abertos
e a disponibilidade de um marinheiro em terra...
Eles não sabem nada nada
- e só por isso é que descobrem tudo.

QUINTANA, Mário, Os invasores. In: A vaca e o hipogrifo. São Paulo: Círculo do Livro,  1977, p. 100.

CÂNTICO XXVI - Cecília Benevides de Carvalho Meireles


Estrada, Floresta, Temporada, Outono, Queda, Paisagem

O que tu viste amargo,

Doloroso,
Difícil,
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...



In: MEIRELES, Cecília. Cânticos. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 202.