sábado, 29 de maio de 2021

O MORCEGO - Augusto dos Anjos


O morcego


Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. 
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: 
Na bruta ardência orgânica da sede, 
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. 

"Vou mandar levantar outra parede ..." 
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho 
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, 
Circularmente sobre a minha rede! 

Pego de um pau. Esforços faço. Chego 
A tocá-lo. Minh'alma se concentra. 
Que ventre produziu tão feio parto?! 

A Consciência Humana é este morcego! 
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra 
Imperceptivelmente em nosso quarto! 

Augusto dos Anjos
Eu e outras poesias

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Para sempre - João da Cruz e Sousa

 



Ah! para sempre! para sempre! Agora

Não nos separaremos nem um dia...

Nunca mais, nunca mais, nesta harmonia

Das nossas almas de divina aurora.


A voz do céu pode vibrar sonora

Ou do Inferno a sinistra sinfonia,

Que num fundo de astral melancolia 

Minh'alma com a tu'alma goza e chora.


Para sempre está feito o augusto pacto!

Cegos seremos do celeste tato,

Do sonho envoltos na estrelada rede, 


E perdidas, perdidas no Infinito

As nossas almas, no clarão bendito,

Hão de enfim saciar tida esta sede ...


In: Cruz e Sousa: poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1982, p. 92-93


 

terça-feira, 11 de maio de 2021

Desencanto - Manuel Bandeira


 

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto. 

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

— Eu faço versos como quem morre.

 

(Teresópolis, 1912)


Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho
In: A cinza das horas,  1917

A inconstância das coisas do mundo - GREGÓRIO DE MATOS






 Inconstância das coisas do mundo!


Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas e alegria.

Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falta a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se a tristeza,

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza.
A firmeza somente na inconstância.