quarta-feira, 22 de julho de 2020
Simbolismo do "centro" - Mircea Eliade
[...]
O que distingue o historiador das religiões de um simples historiador é que ele lida com fatos que, embora históricos, revelam um comportamento que vai muito além dos comportamentos históricos do ser humano. Se é verdade que o homem sempre encontra numa "situação", nem por isso essa situação é sempre histórica, ou seja, unicamente condicionada pelo momento histórico contemporâneo. O homem integral conhece outras situações além da sua condição histórica. Conhece, por exemplo, o estado de sonho, ou de devaneio, ou o da melancolia ou do desprendimento, ou da contemplação estética, ou da evasão etc. - e todos esses estados não são "históricos", embora sejam, para a existência humana, tão autênticos e importantes quanto a sua situação histórica. Aliás, o homem conhece vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico, ou seja, seu próprio tempo, a contemporaneidade histórica. Basta ele escutar uma bela música, ou apaixonar-se, ou rezar, para sair do presente histórico e reintegrar o presente eterno do amor e da religião. Basta ele abrir um romance ou assistir a um espetáculo dramático para encontrar um outro ritmo temporal - o que poderíamos chamar tempo adquirido - que, em todo o caso, não é o tempo histórico.
[...]
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26.
domingo, 12 de julho de 2020
Die Spitze - Rainer Maria Rilke
noch unbestätigter Bestand von Glück:
ist das unmenschlich, daß zu dieser Spitze,
zu diesem kleinen dichten Spitzenstück
zwei Augen wurden? - Willst du sie zurück?
Du Langvergangene und schließlich Blinde,
ist deine Seligkeit in diesem Ding,
zu welcher hin, wie zwischen Stamm und Rinde,
dein großes Fühlen, kleinverwandelt, ging?
Durch einen Riß im Schicksal, eine Lücke
entzogst du deine Seele deiner Zeit;
und sie ist so in diesem lichten Stücke,
daß es mich lächeln macht vor Nützlichkeit..
(RILKE, Rainer Maria. New poems. Translation by Len Krisak; With na Introdution by George c. Schoolfield. New York: Boydell & Brewer, 2015, p. 78-79)
Humanidade:
termo para algo sem dono
mas
sempre cintilante em sua felicidade.
É desumano
que um par de olhos
tenham se
reduzido a esta pequena peça de renda tecida -
dois
olhos que você gostaria de ter de volta?
Rendeira,
você há muito tempo se foi (e cega):
e
infundiu nessa renda a sua devoção;
como
uma árvore, pressionada entre o tronco e a casca, encontra
o
caminho, ainda com sua emoção inalterada e bem?
Através
de uma brecha, um rasgo no destino,
você desenhou
sua alma diretamente na história;
e agora
está tão presente nessa renda,
que faz
alguém feliz com a sua utilidade.
(tradução minha)
quarta-feira, 1 de julho de 2020
OS INVASORES - Mário Quintana
Há muito que os marcianos invadiram o mundo:
são os poetas
e
como não sabem nada de nada
limitam-se a ter os olhos muito abertos
e a disponibilidade de um marinheiro em terra...
Eles não sabem nada nada
- e só por isso é que descobrem tudo.
QUINTANA, Mário, Os invasores. In: A vaca e o hipogrifo. São Paulo: Círculo do Livro, 1977, p. 100.
CÂNTICO XXVI - Cecília Benevides de Carvalho Meireles
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
In: MEIRELES, Cecília. Cânticos. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 202.
sexta-feira, 22 de maio de 2020
GITANJALI , 31 - Rabindranath Tagore
"Prisioneiro, contai-me quem foi que te prendeu?”
"Foi meu mestre" respondeu o prisioneiro, "Pensei que poderia assombrar o mundo com meu poder e riqueza, e acumulei em meu cofre o dinheiro que pertencia ao meu rei. Vencido pelo sono, deitei-me no leito que estava preparado para meu senhor e, quando acordei, encontrei-me preso em meu próprio cofre".
"Prisioneiro, contai-me quem foi que forjou essa inquebrantável corrente?"
"Fui eu mesmo", disse o prisioneiro. "Fui eu que forjei cuidadosamente essa corrente. Pensei que poderia prender o mundo com meu invencível poder, e que isso poderia me deixar em imperturbável liberdade. Noite e dia trabalhei nessa corrente com fogos terríveis e duras e cruéis marteladas. Quando terminei o trabalho e os elos estavam completos e inquebráveis, descobri que a corrente acorrentava a mim mesmo".
Rabindranath Tagore (Gurudev) - 1861/1941
domingo, 17 de maio de 2020
ORAÇÃO DA NOITE - Emiliano Perneta
A Nestor Vítor
Já de sombra se encheu o vale, que murmura,Já se envolveu na treva a montanha, e o mar,
Ao longe, não é mais do que uma nódoa escura...
São horas de dormir; Maria: vem rezar.
Ajoelha-te aqui, em face das estrelas,
E em primeiro lugar, minha filha, bendiz’
A luz, que te criou formosa entre as mais belas,
E que te fez alegre, e portanto feliz.
Em seguida, bendize a terra e aqueles pobres
E mansos animais, e toda a criação:
A ovelha que te deu a lã, de que te cobres,
O boi que te ajudou, hoje, a ganhar o pão.
Abençoa também as árvores, o ramo
Carregado de fruto, as aleias em flor,
Onde correste mais ligeira do que um gamo,
A fronte a rorejar em gotas de suor.
Reza por todos e por tudo, porém reza,
Principalmente, pelos bons, que são os teus,
Na verde catedral chamada Natureza,
Única onde se pode inda falar com Deus.
Reza por todos os lutadores, Maria,
Que andam de arado em punho e de enxada na mão,
Cavando, sabe Deus, o pão de cada dia
Com que amargura, mas com que resignação!
Vê que silêncio tem a noite, e quão secreta
E misteriosamente a lua apareceu,
Descabelada, assim como uma Julieta,
Doida, a correr, atrás d’um pálido Romeu...
Vai, bendize essa paz, abençoa essas águas,
Que murmuram, à noite, éclogas ideais,
Como uma ninfa que soluçasse de mágoas,
Entre um vale de murta e um bosque de rosais...
Finalmente, abençoa a carícia do sono
Que eu já vejo descer sobre os teus olhos nus,
Inda mais leve do que uma folha d’outono,
Mais leve do que o som, mais leve do que a luz.
Suga como um vampiro esse dourado vinho,
Que nos faz esquecer tudo de uma só vez,
E é o caminho mais curto, e o melhor caminho,
E o manto que nos cobre a dor e a nudez!
Abril – 1912
PERNETA, Emiliano. Oração da Noite. In: Setembro.
SIGNIFICADOS - Moana Mairink Dutra de Souza
Em uma mesa retangular, com
conjunto de oito cadeiras, foi decidido uma viagem para praia. Imaginei eu que
seria maravilhoso como sempre. Nós costumávamos ir à praia, a única diferença
foi o combinado que ocorreu naquela reunião em família, para que minha mãe não
fumasse, o que achei, na época, que era um pedido muito severo, já que mamãe
gostava tanto de fumar.
Ela, por sua vez, disse que
preferia morrer a parar de fumar, eu a entendi, não na frase intensa por um
todo, mas meu bico ou chupeta sempre estava comigo; eu também gostava muito e
não largava por nada. Logo depois desse pronunciamento ríspido de minha mãe, meu
pai vomitou palavras sobre a mesa que chocaram todos, menos a mim.
– A mãe de vocês vai falecer!!!!! -
exclamou meu pai em alto e bom tom.
Observei tudo aquilo e não estava
entendendo absolutamente nada. Minha preocupação, para uma criança de seis anos
de idade, era apenas assistir meu desenho favorito na TV. Então, dito aquilo e com
o silêncio que isso gerou em seguida, eu então percebi claramente que já tinha
acabado a reunião em família e disse:
- Tá bom, vou para a sala assistir
desenho, tá?!
Permitiram que eu saísse da mesa, mas
ninguém me explicou o significado de falecer. Estava tudo bem certo, né? Era
apenas mais uma das tantas palavras difíceis que adultos falam.
A viagem à praia estava diferente,
minha mãe passou mal por todo o caminho. Ela amava aquela estrada, nunca passou
mal. O que estava acontecendo?
Finalmente chegamos e fomos para
casa da minha avó, mãe de minha mãe. A casa não estava com a felicidade que a
maresia carregava. Todos da família de minha mãe estavam lá; nos abraçaram
muito, mas tudo bem, né? Eles sempre foram muito carinhosos. Os dias passaram e
percebi que minha mãe encontrou um lugarzinho de aconchego debaixo do pé de
carambola que tinha no quintal. Todos os dias ela levava seu colchão, deitava e
ficava me observando. Eu, que não largava ela, ficava por lá brincando com umas
borboletinhas chamadas soldadinhos. Eram pequeninos, com asas pretas e bolinhas
brancas; eram belíssimos.
Estava tudo bem, certo, né? Errado,
completamente errado. Os dias se passaram e apareceram macas, galões de
oxigênio. Minha mãe, que antes tinha um cabelo na cintura, encaracolado, e uma
boa forma e felicidade constante, agora estava careca, sempre chorando, tossia
muito. Tossia tanto que chegava a vomitar. Lembro bem dela com a mão na testa,
completamente desesperada. Algo não estava certo.
Acordei na manhã seguinte com todos
desesperados, correndo de um lado para o outro. Eu fui até a varanda da frente
olhar o que estava acontecendo: tinha tubulação e fios que levavam até a rua e
minha mãe estava lá com uma máscara de oxigênio, do lado de um carro da cor
preta. Então decidi ir até ela.
Para não tropeçar nos fios e desligar
tudo, eu fui pulando por eles, um pulinho por vez. Quase chegando na porta,
passaram crianças correndo das quais não me recordo porque eu não tinha primos
da minha idade. Levaram com eles todos os fios e o oxigênio de minha mãe. Vi
com os olhos de uma garota aos seis anos, a pessoa que mais amei pedir por ar e
não encontrar. Eu corri eu corri muito pra chegar até ela, eu tentei abraçar,
tentaram me tirar. Ela olhou pra mim desesperada, querendo um abraço ou me
afastar para não ver o que aconteceria a seguir. Ela desmaiou.
Colocaram minha mãe no carro preto
que estava ao lado. Pedi para ir junto, mas nenhum adulto deixou. Eu só queria
minha mãe, eu queria saber se ela estava bem, queria saber se ela tinha
acordado.
Ela não acordaria mais.
Aquela palavra que eu desconhecia,
acabei de entender da forma mais dolorosa que um filho pode entender. Ela não
desmaiou, ela faleceu!
Moana Mairink Dutra de Souza
sábado, 7 de julho de 2018
DAS PEDRAS - Cora Coralina (Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.
CORALINA, Cora. Melhores Poemas - seleção Darcy F. Denófrio. São Paulo: Global, 2008, p. 213.
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.
CORALINA, Cora. Melhores Poemas - seleção Darcy F. Denófrio. São Paulo: Global, 2008, p. 213.
domingo, 16 de abril de 2017
I DREAMED A DREAM - Alain Boublil
There was a time when men were kind
When their voices were soft
And their words inviting.
There was a time when love was blind
And the world was a song
And the song was exciting.
There was a time ... then it all went wrong
I dreamed a dream in time gone by
When hope was high and life worth living,
I dreamed that love would never die
I dreamed that God would be forgiving.
Then I was young and unafraid,
When dreams were made and used and wasted.
There was no ransom to be paid,
No song unsung, no wine untasted.
But the tigers come at night,
With their voices soft as thunder,
As they tear your hope apart
As they turn your dream to shame
He slept a summer by my side.
He filled my days with endless wonder,
He took my childhood in his stride,
But he was gone when autumn came.
And still I dreamed he'll come to me
That we will live the years together,
But there are dreams that cannot be
And there are storms we cannot weather.
I had a dream my life would be
So different from this hell I'm living
So different now from what it seemed
Now life has killed the dream
I dreamed.
Theme Les Misérables - Alain Boublil
quarta-feira, 12 de abril de 2017
Entre amigos - Friedrich Nietzsche
POSLÚDIO
1
É belo calar-se juntos,2
Mais belo rir juntos,
Sob a ternura de um céu de seda,
Encostados no musgo da faia,
Rir afetuosamente com amigos, riso claro,
E mostrar-se mutuamente dentes brancos.
Se faço bem, calaremos;
Se falo mal – riremos,
E de mais a mais faremos mal,
Mais mal faremos, mais mal riremos,
Tanto que desceremos ao fosso.
Amigo! Sim! Assim deve ser?
Amém! E até logo!
Sem desculpa! Sem recusa!
Concordem, alegres homens livres pelo coração,
Com este livro do absurdo
Ouvido e coração e moradia!
Acreditem em mim, meus amigos, não é maldição
Que me deixou assim em meu absurdo!
O que encontro, o que procuro –
Já esteve alguma vez num livro?
Honrem em mim os loucos!
Aprendam deste livro louco
Como a razão evolui – “para o absurdo”!
Meus amigos, assim deve ser?
Amém! E até logo!
NIETZSCHE, Friedrich W.Poslúdio. In Humano, Demasiado Humano.Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2007, p. 303-304.
sexta-feira, 31 de março de 2017
DO SUPÉRFLUO - Henriqueta Lisboa
Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?
HENRIQUETA LISBOA
Pousada do Ser (1982)
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
Lições de um gato siamês - Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira)
durma bem Kikão!
Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
finita
da minha precariedade O tempo fora
de mim
é relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
— dura eternamente
enquanto vivo
E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)
Ferreira Gullar
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
Cântico da esperança - Rabindranath Tagore
Não peça eu nunca
para me ver livre de perigos,
mas coragem para afrontá-los.
Não queira eu
que se apaguem as minhas dores,
mas que saiba dominá-las
no meu coração.
Não procure eu amigos
no campo da batalha da vida,
mas ter forças dentro de mim.
Não deseje eu ansiosamente
ser salvo,
mas ter esperança
para conquistar pacientemente
a minha liberdade.
Não seja eu tão cobarde, Senhor,
que deseje a tua misericórdia
no meu triunfo,
mas apertar a tua mão
no meu fracasso!
para me ver livre de perigos,
mas coragem para afrontá-los.
Não queira eu
que se apaguem as minhas dores,
mas que saiba dominá-las
no meu coração.
Não procure eu amigos
no campo da batalha da vida,
mas ter forças dentro de mim.
Não deseje eu ansiosamente
ser salvo,
mas ter esperança
para conquistar pacientemente
a minha liberdade.
Não seja eu tão cobarde, Senhor,
que deseje a tua misericórdia
no meu triunfo,
mas apertar a tua mão
no meu fracasso!
Rabindranath Tagore
in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões
Let me not pray to be sheltered from dangers,
but to be fearless in facing them.
Let me not beg for the stilling of my pain,
but for the heart to conquer it.
Let me not look for allies in life’s battlefield,
but to my own strength.
Let me not crave in anxious fear to be saved,
but hope for the patience to win my freedom.
Grant that I may not be a coward,
feeling Your mercy in my success alone;
But let me find the grasp of Your hand in my failure.
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