sexta-feira, 22 de maio de 2020

GITANJALI , 31 - Rabindranath Tagore


Rabindranath Tagore - Wikiwand



"Prisioneiro, contai-me quem foi que te prendeu?”
"Foi meu mestre" respondeu o prisioneiro, "Pensei que poderia assombrar o mundo com meu poder e riqueza, e acumulei em meu cofre o dinheiro que pertencia ao meu rei. Vencido pelo sono, deitei-me no leito que estava preparado para meu senhor e, quando acordei, encontrei-me preso em meu próprio cofre".
"Prisioneiro, contai-me quem foi que forjou essa inquebrantável corrente?"
"Fui eu mesmo", disse o prisioneiro. "Fui eu que forjei cuidadosamente essa corrente. Pensei que poderia prender o mundo com meu invencível poder, e que isso poderia me deixar em imperturbável liberdade. Noite e dia trabalhei nessa corrente com fogos terríveis e duras e cruéis marteladas. Quando terminei o trabalho e os elos estavam completos e inquebráveis, descobri que a corrente acorrentava a mim mesmo".

Rabindranath Tagore (Gurudev) - 1861/1941

domingo, 17 de maio de 2020

ORAÇÃO DA NOITE - Emiliano Perneta



A Nestor Vítor
Já de sombra se encheu o vale, que murmura,
Já se envolveu na treva a montanha, e o mar,
Ao longe, não é mais do que uma nódoa escura...
São horas de dormir; Maria: vem rezar.

Ajoelha-te aqui, em face das estrelas,
E em primeiro lugar, minha filha, bendiz’
A luz, que te criou formosa entre as mais belas,
E que te fez alegre, e portanto feliz.

Em seguida, bendize a terra e aqueles pobres
E mansos animais, e toda a criação:
A ovelha que te deu a lã, de que te cobres,
O boi que te ajudou, hoje, a ganhar o pão.

Abençoa também as árvores, o ramo
Carregado de fruto, as aleias em flor,
Onde correste mais ligeira do que um gamo,
A fronte a rorejar em gotas de suor.

Reza por todos e por tudo, porém reza,
Principalmente, pelos bons, que são os teus,
Na verde catedral chamada Natureza,
Única onde se pode inda falar com Deus.

Reza por todos os lutadores, Maria,
Que andam de arado em punho e de enxada na mão,
Cavando, sabe Deus, o pão de cada dia
Com que amargura, mas com que resignação!

Vê que silêncio tem a noite, e quão secreta
E misteriosamente a lua apareceu,
Descabelada, assim como uma Julieta,
Doida, a correr, atrás d’um pálido Romeu...

Vai, bendize essa paz, abençoa essas águas,
Que murmuram, à noite, éclogas ideais,
Como uma ninfa que soluçasse de mágoas,
Entre um vale de murta e um bosque de rosais...

Finalmente, abençoa a carícia do sono
Que eu já vejo descer sobre os teus olhos nus,
Inda mais leve do que uma folha d’outono,
Mais leve do que o som, mais leve do que a luz.

Suga como um vampiro esse dourado vinho,
Que nos faz esquecer tudo de uma só vez,
E é o caminho mais curto, e o melhor caminho,
E o manto que nos cobre a dor e a nudez!

Abril – 1912


PERNETA, Emiliano. Oração da Noite. In: Setembro. 

SIGNIFICADOS - Moana Mairink Dutra de Souza



     

Em uma mesa retangular, com conjunto de oito cadeiras, foi decidido uma viagem para praia. Imaginei eu que seria maravilhoso como sempre. Nós costumávamos ir à praia, a única diferença foi o combinado que ocorreu naquela reunião em família, para que minha mãe não fumasse, o que achei, na época, que era um pedido muito severo, já que mamãe gostava tanto de fumar.
Ela, por sua vez, disse que preferia morrer a parar de fumar, eu a entendi, não na frase intensa por um todo, mas meu bico ou chupeta sempre estava comigo; eu também gostava muito e não largava por nada. Logo depois desse pronunciamento ríspido de minha mãe, meu pai vomitou palavras sobre a mesa que chocaram todos, menos a mim.
– A mãe de vocês vai falecer!!!!! - exclamou meu pai em alto e bom tom.
Observei tudo aquilo e não estava entendendo absolutamente nada. Minha preocupação, para uma criança de seis anos de idade, era apenas assistir meu desenho favorito na TV. Então, dito aquilo e com o silêncio que isso gerou em seguida, eu então percebi claramente que já tinha acabado a reunião em família e disse:
- Tá bom, vou para a sala assistir desenho, tá?!
Permitiram que eu saísse da mesa, mas ninguém me explicou o significado de falecer. Estava tudo bem certo, né? Era apenas mais uma das tantas palavras difíceis que adultos falam.
A viagem à praia estava diferente, minha mãe passou mal por todo o caminho. Ela amava aquela estrada, nunca passou mal. O que estava acontecendo?
Finalmente chegamos e fomos para casa da minha avó, mãe de minha mãe. A casa não estava com a felicidade que a maresia carregava. Todos da família de minha mãe estavam lá; nos abraçaram muito, mas tudo bem, né? Eles sempre foram muito carinhosos. Os dias passaram e percebi que minha mãe encontrou um lugarzinho de aconchego debaixo do pé de carambola que tinha no quintal. Todos os dias ela levava seu colchão, deitava e ficava me observando. Eu, que não largava ela, ficava por lá brincando com umas borboletinhas chamadas soldadinhos. Eram pequeninos, com asas pretas e bolinhas brancas; eram belíssimos.
Estava tudo bem, certo, né? Errado, completamente errado. Os dias se passaram e apareceram macas, galões de oxigênio. Minha mãe, que antes tinha um cabelo na cintura, encaracolado, e uma boa forma e felicidade constante, agora estava careca, sempre chorando, tossia muito. Tossia tanto que chegava a vomitar. Lembro bem dela com a mão na testa, completamente desesperada. Algo não estava certo.
Acordei na manhã seguinte com todos desesperados, correndo de um lado para o outro. Eu fui até a varanda da frente olhar o que estava acontecendo: tinha tubulação e fios que levavam até a rua e minha mãe estava lá com uma máscara de oxigênio, do lado de um carro da cor preta. Então decidi ir até ela.
Para não tropeçar nos fios e desligar tudo, eu fui pulando por eles, um pulinho por vez. Quase chegando na porta, passaram crianças correndo das quais não me recordo porque eu não tinha primos da minha idade. Levaram com eles todos os fios e o oxigênio de minha mãe. Vi com os olhos de uma garota aos seis anos, a pessoa que mais amei pedir por ar e não encontrar. Eu corri eu corri muito pra chegar até ela, eu tentei abraçar, tentaram me tirar. Ela olhou pra mim desesperada, querendo um abraço ou me afastar para não ver o que aconteceria a seguir. Ela desmaiou.
Colocaram minha mãe no carro preto que estava ao lado. Pedi para ir junto, mas nenhum adulto deixou. Eu só queria minha mãe, eu queria saber se ela estava bem, queria saber se ela tinha acordado.
Ela não acordaria mais.

Aquela palavra que eu desconhecia, acabei de entender da forma mais dolorosa que um filho pode entender. Ela não desmaiou, ela faleceu!


Moana Mairink Dutra de Souza