domingo, 17 de junho de 2012

CONSELHO DE UMA LAGARTA



A lagarta e Alice ficaram olhando uma para a outra algum tempo em silêncio. Finalmente a lagarta tirou o narguilé da boca e se dirigiu a ela numa voz lânguida, sonolenta.
"Quem é você?" perguntou a Lagarta.
Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio encabulada. "Eu...eu mal sei, sir, neste exato momento ... peloo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então."
"Que quer dizer com isso?" esbravejou a Lagarta. "Explique-se!"
"Receio não poder me explicar", respondeu Alice, "porque eu não sou eu mesma, entende?"
"Não entendo", disse a Lagarta.
"Receio não poder ser mais clara",  Alice respondeu com muita polidez, "pois eu mesma não consigo entender, para começar; e ser de tantos tamanhos diferentes num dia é muito perturbador."
"Não é", disse a Lagarta.
"Bem, talvez eu ainda não tenha descoberto isso", disse alice; "mas quando tiver de virar uma crisálida...vai acontecer um dia, sabe...e mais tarde uma borboleta, diria que vai achar isso um pouco esquisito, não vai?"
"Nem um pouquinho", disse a Lagarta.
[...]

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou lá. Trad. maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Zahar , 2009, p. 55-57.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

RITMO DI NAPOLI - Cecília Benevides de Carvalho Meireles



Traverso questo momento,
trasfigurata d'altro tempo,
tra muri bianchi di statue.

In sogno rispondo a quello
che dicono in altra lingua.
La luna nasce tra i pioppi.

Che ci sia amore o sconforto,
tutto è come la fragile tinta
di questa sera in quest'acque.

So che cantano, so che passano,
che la barche hanno remi verdi,
e quello è il golfo di Napoli.

So che nell'alma ho silenzio,
che di silenzio cingo il mondo
e c'è primavera sui rami.

MEIRELES, Cecília. Poemi Italiani. Trad. Edoardo Bizzarri. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1968, p. 28.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

MORS


Nesse risonho lar,
a dor caiu neste momento,
como se fosse a chuva, o vento,
o raio, e bate sem cessar...
Bate e estala,
como uma louca,
de boca em boca,
de sala em sala...
somente tu, flor delicada,
como quem veio
fatigada
de um passeio,
tombaste ali, silenciosa,
sobre o sofá,
no abandono,
pálida rosa,
de um longo sono,
de que ninguém te acordará!


PERNETA, Emiliano. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1960, p. 35-36.

sábado, 12 de maio de 2012

Cecília Meireles, 26/11/1944, às filhas (fragmento de carta) - Cecília Benevides de Carvalho Meireles





[...]


Ah, mas eu ia me esquecendo de contar o resto do jantar. A sobremesa era outra vez goiabada com queijo. E o mocinho me disse. "Aqui todo o dia é a mesma coisa. Só aos domingos é que varia. Este hotel se chama Grande Hotel, mas não presta. O melhor é o Moderno. Este é muito antigo. Pode ser que já tenha sido Grande..." Achei muito engraçado. E disse: "Agora vou comer a sobremesa para tirar o gosto do jantar, beber uma gota de café para tirar o gosto da sobremesa, e beber um pouco dágua para tirar o gosto do café." E ele me perguntou: "E depois, a sra não fuma? " Ele é um mocinho inteligente. Mas não devia falar tanto mal do hotel em que trabalha, porque isso não fica bem.

fragmento de carta de Cecília Meireles às suas filhas. In: MORAES, Marcos A. de. (org.) Três Marias de Cecília, p. 131;

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Quando for o momento da mudança - Delvanir Lopes






Quando for o momento da mudança
espero estar banhado em sangue
e com a carruagem subir.
Ser levado às nuvens
por carpas e peixes de cristal
até as colunas, os umbrais...

Quando for o momento das mudanças
quero ter as pálpebras abertas,
a força no corpo,
o anseio no espírito
e rapidamente me deixar arrastar
pela luz.

Quando for a mudança
o que sobrará de mim serão só gotas
que a terra sugará
e regarão casulos.

Hematopoiese.

LOPES, Delvanir. Hematopoiese. Pará de Minas (MG): VirtualBooks, 2011, p. 09.

domingo, 11 de março de 2012

RILKE - a arte de escrever




[...] "A sua existência, mesmo na hora mais indiferente e vazia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso. Aproxime-se então da natureza. Depois procure como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite, de início,os temas demasiados comuns: são os mais difíceis. Nos assuntos em que tradições seguras, às vezes brilhantes, se mostram em grande número, o poeta só pode realizar obra pessoal na plena maturidade da sua força. Fuja dos grandes assuntos e aproveite aqueles que o dia-a-dia lhe oferece. Fale das suas tristezas e dos seus desejos, dos pensamentos que o tocam, da sua fé na beleza. Utilize, para se exprimir, os objetos que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, as lembranças. Se o quotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador nada é pobre. não há lugaresmesquinhos e indiferentes. Mesmo num cárcere cujas paredes abafassem todos os ruídos do universo, não lhe ficaria sempre a sua infância, essa preciosa, essa esplêndida riqueza, esse tesouro de recordações?" [...]


RILKE, Rainer M. Poemas e Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Technoprint, 1970,p. 125-126.

quarta-feira, 7 de março de 2012

ALEGRIA


Alegria
Come un lampo di vita
Alegria
Come un pazzo gridare

Alegria
Del delittuoso grido
Bella ruggente pena,
Seren
Come la rabbia di amar

Alegria
Come un assalto di gioia
Alegria
I see a spark of life shining

Alegria
I hear a young minstrel sing
Alegria
Beautiful roaring scream
Of joy and sorrow,
So extreme
There is a love in me raging

Alegria
A joyous,
Magical feeling

CIRQUE DU SOLEIL
https://www.youtube.com/watch?v=GGXfiyh17uY












segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

GOTAS DE HIEL - Gabriela Mistral (Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga)




No cantes: siempre queda

a tu lengua apegado
un canto: el que debió ser entregado.

No beses: siempre queda,
por maldición extraña,
el beso al que no alcanzan las entrañas.

Reza, reza que es dulce; pero sabe
que no acierta a decir tu lengua avara
el sólo Padre Nuestro que salvara.

Y no llames la muerte por clemente,
pues en las carnes de blancura inmensa,
un jirón vivo quedará que siente
la piedra que te ahoga
y el gusano voraz que te destrenza.

Gabriela Mistral




MIRANDA SALLES, Ruth s. de; TEJEDA, Patrícia. Gabriela Mistral & Cecília Meireles.
Rio de Janeiro: ABL/ Santiago de Chile: Acad. Chil. de la Lengua, 2003, p. 30-31

domingo, 4 de dezembro de 2011

DA SOLIDÃO - Cecília Benevides de Carvalho Meireles



Há muitas pessoas que sofrem do mal da solidão. Basta que em redor delas se arme o silêncio, que não se manifeste aos seus olhos nenhuma presença humana, para que delas se apodere imensa angústia: como se o peso do céu desabasse sobre a sua cabeça, como se dos horizontes se levantasse o anúncio do fim. No entanto, haverá na terra verdadeira solidão? [...] Tudo é vivo e tudo fala, em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas, mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. [...]
Oh! se vos queixais de solidão humana, prestai atenção, em redor de vós, a essa prestigiosa presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversará convosco interminavelmente.

MEIRELES, Cecília. Da solidão. In: Escolha o seu sonho. São Paulo: Círculo do Livro, 1974, p. 39-42.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

AS CIDADES CONTÍNUAS I

A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias: a população acorda todas as manhãs em lençóis frescos, lava-se com sabonetes recém-tirados da embalagem, veste roupões novíssimos, extrai das mais avançadas geladeiras latas ainda intatas, escutando as últimas lengalengas do último modelo de rádio.
Nas calçadas, envoltos em límpidos sacos plásticos, os restos de Leônia de ontem aguardam a carroça do lixeiro. Não só tubos retorcidos de pasta de dente, lâmpadas queimadas, jornais, recipientes, materiais de embalagem, mas também aquecedores, enciclopédias,pianos, aparelhos de jantar de porcelana: mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas. Tanto que se preguna se a verdadeira paixão de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o fato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente. O certo é que os lixeiros são acolhidos como anjos e a sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeito sileencioso, como um rito que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas. (...)
O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e de todos os dias e lustros. (...)

CALVINO, Ítalo. As cidade contínuas I. In:______. As cidades Invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. Rio de Janeiro: O Globo/ Folha de são Paulo, 2003, p. 109-110.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

COISAS QUE VÊM NA SORTE - Cecília Benevides de Carvalho Meireles


Acredito nos fatos mágicos. Sinto que andamos todos entre mistérios. Entre vultos que não aparecem. Executando ações incompreensíveis. Dizendo só metades de pensamentos. Construindo só pedaços de nossa história.
Pode ser que algum dia venha uma sombra mais sábia, e me leve consigo, por um caminho que ainda não descobri.
E a tua lembrança iria como a ponta de um manto ligando os passos que vão para a frente com o chão que ficou para trás. E o gosto da tristeza seria um anel envenenado na minha boca. de modo que eu não pudesse cantar. Nem falar. Nem sorrir.
***
Mas estou persuadida de que ir ou ficar é o mesmo. Não creio nos tempos. Não creio nos lugares. Não creio nas coisas. Não creio em ninguém. Talvez em mim, unicamente e levemente.
Tudo isto apenas porque sucedeu ficares de olhos fechados. Quem diria! e, ainda que agora os abrisses, tudo seria como está.
Por isso, desconfio que, se alguma sombra vier, eu é que lhe falarei brandamente, com uma linguagem sugestiva: "Não me leves, não. Estou muito feliz aqui. Até o fim dos horizontes, não há nada que me seduza. Nem do outro lado da terra. Nem mesmo acima do céu."

MEIRELES, Cecília. Coisas que vêm na sorte. In:______. Episódio Humano. Rio de Janeiro: Desiderata/ Batel, 2007, p. 88-89.