domingo, 17 de maio de 2020

SIGNIFICADOS - Moana Mairink Dutra de Souza



     

Em uma mesa retangular, com conjunto de oito cadeiras, foi decidido uma viagem para praia. Imaginei eu que seria maravilhoso como sempre. Nós costumávamos ir à praia, a única diferença foi o combinado que ocorreu naquela reunião em família, para que minha mãe não fumasse, o que achei, na época, que era um pedido muito severo, já que mamãe gostava tanto de fumar.
Ela, por sua vez, disse que preferia morrer a parar de fumar, eu a entendi, não na frase intensa por um todo, mas meu bico ou chupeta sempre estava comigo; eu também gostava muito e não largava por nada. Logo depois desse pronunciamento ríspido de minha mãe, meu pai vomitou palavras sobre a mesa que chocaram todos, menos a mim.
– A mãe de vocês vai falecer!!!!! - exclamou meu pai em alto e bom tom.
Observei tudo aquilo e não estava entendendo absolutamente nada. Minha preocupação, para uma criança de seis anos de idade, era apenas assistir meu desenho favorito na TV. Então, dito aquilo e com o silêncio que isso gerou em seguida, eu então percebi claramente que já tinha acabado a reunião em família e disse:
- Tá bom, vou para a sala assistir desenho, tá?!
Permitiram que eu saísse da mesa, mas ninguém me explicou o significado de falecer. Estava tudo bem certo, né? Era apenas mais uma das tantas palavras difíceis que adultos falam.
A viagem à praia estava diferente, minha mãe passou mal por todo o caminho. Ela amava aquela estrada, nunca passou mal. O que estava acontecendo?
Finalmente chegamos e fomos para casa da minha avó, mãe de minha mãe. A casa não estava com a felicidade que a maresia carregava. Todos da família de minha mãe estavam lá; nos abraçaram muito, mas tudo bem, né? Eles sempre foram muito carinhosos. Os dias passaram e percebi que minha mãe encontrou um lugarzinho de aconchego debaixo do pé de carambola que tinha no quintal. Todos os dias ela levava seu colchão, deitava e ficava me observando. Eu, que não largava ela, ficava por lá brincando com umas borboletinhas chamadas soldadinhos. Eram pequeninos, com asas pretas e bolinhas brancas; eram belíssimos.
Estava tudo bem, certo, né? Errado, completamente errado. Os dias se passaram e apareceram macas, galões de oxigênio. Minha mãe, que antes tinha um cabelo na cintura, encaracolado, e uma boa forma e felicidade constante, agora estava careca, sempre chorando, tossia muito. Tossia tanto que chegava a vomitar. Lembro bem dela com a mão na testa, completamente desesperada. Algo não estava certo.
Acordei na manhã seguinte com todos desesperados, correndo de um lado para o outro. Eu fui até a varanda da frente olhar o que estava acontecendo: tinha tubulação e fios que levavam até a rua e minha mãe estava lá com uma máscara de oxigênio, do lado de um carro da cor preta. Então decidi ir até ela.
Para não tropeçar nos fios e desligar tudo, eu fui pulando por eles, um pulinho por vez. Quase chegando na porta, passaram crianças correndo das quais não me recordo porque eu não tinha primos da minha idade. Levaram com eles todos os fios e o oxigênio de minha mãe. Vi com os olhos de uma garota aos seis anos, a pessoa que mais amei pedir por ar e não encontrar. Eu corri eu corri muito pra chegar até ela, eu tentei abraçar, tentaram me tirar. Ela olhou pra mim desesperada, querendo um abraço ou me afastar para não ver o que aconteceria a seguir. Ela desmaiou.
Colocaram minha mãe no carro preto que estava ao lado. Pedi para ir junto, mas nenhum adulto deixou. Eu só queria minha mãe, eu queria saber se ela estava bem, queria saber se ela tinha acordado.
Ela não acordaria mais.

Aquela palavra que eu desconhecia, acabei de entender da forma mais dolorosa que um filho pode entender. Ela não desmaiou, ela faleceu!


Moana Mairink Dutra de Souza


sábado, 7 de julho de 2018

DAS PEDRAS - Cora Coralina (Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)

Ajuntei todas as pedras 
que vieram sobre mim. 
Levantei uma escada muito alta 
e no alto subi. 
Teci um tapete floreado 
e no sonho me perdi. 

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Uma estrada, 
um leito, 
uma casa, 
um companheiro. 
Tudo de pedra. 


Entre pedras 
cresceu a minha poesia. 
Minha vida... 
Quebrando pedras 
e plantando flores. 


Entre pedras que me esmagavam 
Levantei a pedra rude 
dos meus versos.


CORALINA, Cora. Melhores Poemas - seleção Darcy F. Denófrio. São Paulo: Global, 2008, p. 213.

domingo, 16 de abril de 2017

I DREAMED A DREAM - Alain Boublil

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There was a time when men were kind

When their voices were soft
And their words inviting.
There was a time when love was blind
And the world was a song
And the song was exciting.
There was a time ... then it all went wrong

I dreamed a dream in time gone by
When hope was high and life worth living,
I dreamed that love would never die
I dreamed that God would be forgiving.

Then I was young and unafraid,
When dreams were made and used and wasted.
There was no ransom to be paid,
No song unsung, no wine untasted.

But the tigers come at night,
With their voices soft as thunder,
As they tear your hope apart
As they turn your dream to shame

He slept a summer by my side.
He filled my days with endless wonder,
He took my childhood in his stride,
But he was gone when autumn came.

And still I dreamed he'll come to me
That we will live the years together,
But there are dreams that cannot be
And there are storms we cannot weather.

I had a dream my life would be
So different from this hell I'm living
So different now from what it seemed
Now life has killed the dream
I dreamed.


Theme Les Misérables - Alain Boublil

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Entre amigos - Friedrich Nietzsche


 


POSLÚDIO 

1
É belo calar-se juntos,
Mais belo rir juntos,
Sob a ternura de um céu de seda,
Encostados no musgo da faia,
Rir afetuosamente com amigos, riso claro,
E mostrar-se mutuamente dentes brancos.
Se faço bem, calaremos;
Se falo mal – riremos,
E de mais a mais faremos mal,
Mais mal faremos, mais mal riremos,
Tanto que desceremos ao fosso.
Amigo! Sim! Assim deve ser?
Amém! E até logo!
2

Sem desculpa! Sem recusa!
Concordem, alegres homens livres pelo coração,
Com este livro do absurdo
Ouvido e coração e moradia!
Acreditem em mim, meus amigos, não é maldição
Que me deixou assim em meu absurdo!
O que encontro, o que procuro –
Já esteve alguma vez num livro?
Honrem em mim os loucos!
Aprendam deste livro louco
Como a razão evolui – “para o absurdo”!
Meus amigos, assim deve ser?
Amém! E até logo!

NIETZSCHE, Friedrich W.Poslúdio. In Humano, Demasiado Humano.Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2007, p. 303-304.

sexta-feira, 31 de março de 2017

DO SUPÉRFLUO - Henriqueta Lisboa

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Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?


HENRIQUETA LISBOA

Pousada do Ser (1982)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Lições de um gato siamês - Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira)

durma bem Kikão! 

Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
       finita
       da minha precariedade O tempo fora
 de mim
            é relativo
 mas não o tempo vivo:
 esse é eterno
 porque afetivo
 — dura eternamente
   enquanto vivo
 E como não vivo
 além do que vivo
 não é
 tempo relativo:
 dura em si mesmo
 eterno (e transitivo)

                                        Ferreira Gullar

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Cântico da esperança - Rabindranath Tagore



Não peça eu nunca 
para me ver livre de perigos, 
mas coragem para afrontá-los. 

Não queira eu 
que se apaguem as minhas dores, 
mas que saiba dominá-las 
no meu coração. 

Não procure eu amigos 
no campo da batalha da vida, 
mas ter forças dentro de mim. 

Não deseje eu ansiosamente 
ser salvo, 
mas ter esperança 
para conquistar pacientemente 
a minha liberdade. 

Não seja eu tão cobarde, Senhor, 
que deseje a tua misericórdia 
no meu triunfo, 
mas apertar a tua mão 
no meu fracasso! 

Rabindranath Tagore




 in "O Coração da Primavera" 
Tradução de Manuel Simões



Let me not pray to be sheltered from dangers,
but to be fearless in facing them.
Let me not beg for the stilling of my pain,
but for the heart to conquer it.
Let me not look for allies in life’s battlefield,
but to my own strength.
Let me not crave in anxious fear to be saved,
but hope for the patience to win my freedom.
Grant that I may not be a coward,
feeling Your mercy in my success alone;
But let me find the grasp of Your hand in my failure.







O CONTO - Cecília Benevides de Carvalho Meireles







“No fim do mundo, nas terras brancas, frias, ignotas,
‘Vive um palácio muito bonito, com portas de ouro,
‘E um Rei que nunca na sua vida sofreu derrotas
‘E que tem gemas iguais à lua no seu tesouro…

Para se ir lá, sobem-se muitas, muitas montanhas,
‘Passam-se mares todos revoltos sob procelas,
‘Descem-se abismos em cujas negras, mudas entranhas
‘Dragões de fogo fazem perguntas, mostrando as goelas…

Anda-se muito, sofre-se muito… Mas é preciso,
‘Para chegar-se ao palácio lindo no fim do mundo,
‘Que a alma, ao contrário, seja um caminho liso, bem liso,
‘Como o céu claro, puro, bondoso, grande, profundo…

Quando se alcançam as terras brancas, frias, ignotas,
Sozinhas se abrem as portas de ouro, caladamente…
E o Rei que nunca na sua vida sofreu derrotas
‘Estende em taça cor das estrelas muito remotas
‘A água que apaga todas as dores da alma da gente…”

Cecília Meireles

In Acervo do memorial do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

É ESTRANHO - Henriqueta Lisboa




É estranho que, após o pranto
vertido em rios sobre os mares
venha pousar-te no ombro
o pássaro das ilas, ó náufrago.

É estranho que, depois das trevas
semeadas por sobre as valas,
teus sentidos se adelgacem
diante das clareiras, ó cego.

É estranho que, depois de morto,
rompidos os esteios da alma
e descaminhado o corpo,
homem, tenhas reino mais alto.




 Henriqueta Lisboa In Flor da Morte

domingo, 25 de setembro de 2016

Mar - Sophia de Mello Breyner Andresen


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Mar
I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua
.
II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.


Sophia de Mello Breyner Andresen In Poesia, 1944

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

DA NOITE - Hilda de Almeida Prado Hilst

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DA NOITE

III

Vem dos vales a voz. Do poço.
Dos penhascos. Vem funda e fria
Amolecida e terna, anêmonas que vi:
Corfu. No mar Egeu. Em Creta.
Vem revestida às vezes de aspereza
Vem com brilhos de dor e madrepérola
Mas ressoa cruel e abjeta
Se me proponho ouvir. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se faz paixão, serpente, e nos habita.


IV

Dirás que sonho o dementado sonho de um poeta
Se digo que me vi em outras vidas
Entre claustros, pássaros, de marfim uns barcos?
Dirás que sonho uma rainha persa
Se digo que me vi dolente e inaudita
Entre amoras negras, nêsperas, sempre-vivas?
Mas não. Alguém gritava: acorda, acorda Vida.
E se te digo que estavas a meu lado
E eloqüente e amante e de palavras ávido
Dirás que menti? Mas não. Alguém gritava:
Palavras... apenas sons e areia. Acorda.
Acorda Vida.



hilda hilst

In. http://www.hildahilst.com.br.cpweb0022.servidorwebfacil.com/obras.php?categoria=4&id=7

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

MEU JARDIM - Vander Lee (Vanderlí Catarina)



Tô relendo minha lida, minha alma, meus amores 
Tô revendo minha vida, minha luta, meus valores 
Refazendo minhas forças, minhas fontes, meus favores 
Tô regando minhas folhas, minhas faces, minhas flores
Tô limpando minha casa, minha cama, meu quartinho 
Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho

Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho 
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho 
Estou podando meu jardim
Estou cuidando bem de mim

vander lee

Cantiga de amigo - galego-portuguesa - Martim Codax




Ai ondas que eu vim veer,
se me saberedes dizer
       por que tarda meu amigo sem mim?
  
Ai ondas que eu vim mirar,

se me saberedes contar
       por que tarda meu amigo sem mim?