terça-feira, 18 de agosto de 2020

EPIGRAMA nº 2 - Cecília Benevides de Carvalho Meireles


És precária e veloz, Felicidade.

Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.

Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,

e, para te medir, se inventaram as horas.


Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.

Fizeste para sempre a vida ficar triste:

porque um dia se vê que as horas todas passam,

e um tempo, despovoado e profundo, persiste.


______. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987, p. 85. (do livro Viagem)

quarta-feira, 29 de julho de 2020

O espelho - João Guimarães Rosa (fragmento)



— Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.

ROSA, João G. O espelho. In> ______.Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 122-123

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Simbolismo do "centro" - Mircea Eliade



[...]

O que distingue o historiador das religiões de um simples historiador é que ele lida com fatos que, embora históricos, revelam um comportamento que vai muito além dos comportamentos históricos do ser humano. Se é verdade que o homem sempre encontra numa "situação", nem por isso essa situação é sempre histórica, ou seja, unicamente condicionada pelo momento histórico contemporâneo. O homem integral conhece outras situações além da sua condição histórica. Conhece, por exemplo, o estado de sonho, ou de devaneio, ou o da melancolia ou do desprendimento, ou da contemplação estética, ou da evasão etc. - e todos esses estados não são "históricos", embora sejam, para a existência humana, tão autênticos e importantes quanto a sua situação histórica. Aliás, o homem conhece vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico, ou seja, seu próprio tempo, a contemporaneidade histórica. Basta ele escutar uma bela música, ou apaixonar-se, ou rezar, para sair do presente histórico e reintegrar o presente eterno do amor e da religião. Basta ele abrir um romance ou assistir a um espetáculo dramático para encontrar um outro ritmo temporal - o que poderíamos chamar tempo adquirido - que, em todo o caso, não é o tempo histórico.

[...]


ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26.

domingo, 12 de julho de 2020

Die Spitze - Rainer Maria Rilke




Menschlichkeit: Namen schwankender Besitze, 
 noch unbestätigter Bestand von Glück:
ist das unmenschlich, daß zu dieser Spitze,
zu diesem kleinen dichten Spitzenstück 
zwei Augen wurden? - Willst du sie zurück?

Du Langvergangene und schließlich Blinde, 
ist deine Seligkeit in diesem Ding,
zu welcher hin, wie zwischen Stamm und Rinde, 
dein großes Fühlen, kleinverwandelt, ging?

Durch einen Riß im Schicksal, eine Lücke
entzogst du deine Seele deiner Zeit;
und sie ist so in diesem lichten Stücke,
daß es mich lächeln macht vor Nützlichkeit..

 (RILKE, Rainer Maria. New poems. Translation by Len Krisak; With na Introdution by George c. Schoolfield. New York: Boydell & Brewer, 2015, p. 78-79) 


Humanidade: termo para algo sem dono
mas sempre cintilante em sua felicidade.
É desumano que um par de olhos
tenham se reduzido a esta pequena peça de renda tecida -
dois olhos que você gostaria de ter de volta?

Rendeira, você há muito tempo se foi (e cega):
e infundiu nessa renda a sua devoção;
como uma árvore, pressionada entre o tronco e a casca, encontra
o caminho, ainda com sua emoção inalterada e bem?

Através de uma brecha, um rasgo no destino,
você desenhou sua alma diretamente na história;
e agora está tão presente nessa renda,
que faz alguém feliz com a sua utilidade.

(tradução minha)

quarta-feira, 1 de julho de 2020

OS INVASORES - Mário Quintana



Há muito que os marcianos invadiram o mundo:
são os poetas
e
como não sabem nada de nada
limitam-se a ter os olhos muito abertos
e a disponibilidade de um marinheiro em terra...
Eles não sabem nada nada
- e só por isso é que descobrem tudo.

QUINTANA, Mário, Os invasores. In: A vaca e o hipogrifo. São Paulo: Círculo do Livro,  1977, p. 100.

CÂNTICO XXVI - Cecília Benevides de Carvalho Meireles


Estrada, Floresta, Temporada, Outono, Queda, Paisagem

O que tu viste amargo,

Doloroso,
Difícil,
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...



In: MEIRELES, Cecília. Cânticos. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 202.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

GITANJALI , 31 - Rabindranath Tagore


Rabindranath Tagore - Wikiwand



"Prisioneiro, contai-me quem foi que te prendeu?”
"Foi meu mestre" respondeu o prisioneiro, "Pensei que poderia assombrar o mundo com meu poder e riqueza, e acumulei em meu cofre o dinheiro que pertencia ao meu rei. Vencido pelo sono, deitei-me no leito que estava preparado para meu senhor e, quando acordei, encontrei-me preso em meu próprio cofre".
"Prisioneiro, contai-me quem foi que forjou essa inquebrantável corrente?"
"Fui eu mesmo", disse o prisioneiro. "Fui eu que forjei cuidadosamente essa corrente. Pensei que poderia prender o mundo com meu invencível poder, e que isso poderia me deixar em imperturbável liberdade. Noite e dia trabalhei nessa corrente com fogos terríveis e duras e cruéis marteladas. Quando terminei o trabalho e os elos estavam completos e inquebráveis, descobri que a corrente acorrentava a mim mesmo".

Rabindranath Tagore (Gurudev) - 1861/1941

domingo, 17 de maio de 2020

ORAÇÃO DA NOITE - Emiliano Perneta



A Nestor Vítor
Já de sombra se encheu o vale, que murmura,
Já se envolveu na treva a montanha, e o mar,
Ao longe, não é mais do que uma nódoa escura...
São horas de dormir; Maria: vem rezar.

Ajoelha-te aqui, em face das estrelas,
E em primeiro lugar, minha filha, bendiz’
A luz, que te criou formosa entre as mais belas,
E que te fez alegre, e portanto feliz.

Em seguida, bendize a terra e aqueles pobres
E mansos animais, e toda a criação:
A ovelha que te deu a lã, de que te cobres,
O boi que te ajudou, hoje, a ganhar o pão.

Abençoa também as árvores, o ramo
Carregado de fruto, as aleias em flor,
Onde correste mais ligeira do que um gamo,
A fronte a rorejar em gotas de suor.

Reza por todos e por tudo, porém reza,
Principalmente, pelos bons, que são os teus,
Na verde catedral chamada Natureza,
Única onde se pode inda falar com Deus.

Reza por todos os lutadores, Maria,
Que andam de arado em punho e de enxada na mão,
Cavando, sabe Deus, o pão de cada dia
Com que amargura, mas com que resignação!

Vê que silêncio tem a noite, e quão secreta
E misteriosamente a lua apareceu,
Descabelada, assim como uma Julieta,
Doida, a correr, atrás d’um pálido Romeu...

Vai, bendize essa paz, abençoa essas águas,
Que murmuram, à noite, éclogas ideais,
Como uma ninfa que soluçasse de mágoas,
Entre um vale de murta e um bosque de rosais...

Finalmente, abençoa a carícia do sono
Que eu já vejo descer sobre os teus olhos nus,
Inda mais leve do que uma folha d’outono,
Mais leve do que o som, mais leve do que a luz.

Suga como um vampiro esse dourado vinho,
Que nos faz esquecer tudo de uma só vez,
E é o caminho mais curto, e o melhor caminho,
E o manto que nos cobre a dor e a nudez!

Abril – 1912


PERNETA, Emiliano. Oração da Noite. In: Setembro. 

SIGNIFICADOS - Moana Mairink Dutra de Souza



     

Em uma mesa retangular, com conjunto de oito cadeiras, foi decidido uma viagem para praia. Imaginei eu que seria maravilhoso como sempre. Nós costumávamos ir à praia, a única diferença foi o combinado que ocorreu naquela reunião em família, para que minha mãe não fumasse, o que achei, na época, que era um pedido muito severo, já que mamãe gostava tanto de fumar.
Ela, por sua vez, disse que preferia morrer a parar de fumar, eu a entendi, não na frase intensa por um todo, mas meu bico ou chupeta sempre estava comigo; eu também gostava muito e não largava por nada. Logo depois desse pronunciamento ríspido de minha mãe, meu pai vomitou palavras sobre a mesa que chocaram todos, menos a mim.
– A mãe de vocês vai falecer!!!!! - exclamou meu pai em alto e bom tom.
Observei tudo aquilo e não estava entendendo absolutamente nada. Minha preocupação, para uma criança de seis anos de idade, era apenas assistir meu desenho favorito na TV. Então, dito aquilo e com o silêncio que isso gerou em seguida, eu então percebi claramente que já tinha acabado a reunião em família e disse:
- Tá bom, vou para a sala assistir desenho, tá?!
Permitiram que eu saísse da mesa, mas ninguém me explicou o significado de falecer. Estava tudo bem certo, né? Era apenas mais uma das tantas palavras difíceis que adultos falam.
A viagem à praia estava diferente, minha mãe passou mal por todo o caminho. Ela amava aquela estrada, nunca passou mal. O que estava acontecendo?
Finalmente chegamos e fomos para casa da minha avó, mãe de minha mãe. A casa não estava com a felicidade que a maresia carregava. Todos da família de minha mãe estavam lá; nos abraçaram muito, mas tudo bem, né? Eles sempre foram muito carinhosos. Os dias passaram e percebi que minha mãe encontrou um lugarzinho de aconchego debaixo do pé de carambola que tinha no quintal. Todos os dias ela levava seu colchão, deitava e ficava me observando. Eu, que não largava ela, ficava por lá brincando com umas borboletinhas chamadas soldadinhos. Eram pequeninos, com asas pretas e bolinhas brancas; eram belíssimos.
Estava tudo bem, certo, né? Errado, completamente errado. Os dias se passaram e apareceram macas, galões de oxigênio. Minha mãe, que antes tinha um cabelo na cintura, encaracolado, e uma boa forma e felicidade constante, agora estava careca, sempre chorando, tossia muito. Tossia tanto que chegava a vomitar. Lembro bem dela com a mão na testa, completamente desesperada. Algo não estava certo.
Acordei na manhã seguinte com todos desesperados, correndo de um lado para o outro. Eu fui até a varanda da frente olhar o que estava acontecendo: tinha tubulação e fios que levavam até a rua e minha mãe estava lá com uma máscara de oxigênio, do lado de um carro da cor preta. Então decidi ir até ela.
Para não tropeçar nos fios e desligar tudo, eu fui pulando por eles, um pulinho por vez. Quase chegando na porta, passaram crianças correndo das quais não me recordo porque eu não tinha primos da minha idade. Levaram com eles todos os fios e o oxigênio de minha mãe. Vi com os olhos de uma garota aos seis anos, a pessoa que mais amei pedir por ar e não encontrar. Eu corri eu corri muito pra chegar até ela, eu tentei abraçar, tentaram me tirar. Ela olhou pra mim desesperada, querendo um abraço ou me afastar para não ver o que aconteceria a seguir. Ela desmaiou.
Colocaram minha mãe no carro preto que estava ao lado. Pedi para ir junto, mas nenhum adulto deixou. Eu só queria minha mãe, eu queria saber se ela estava bem, queria saber se ela tinha acordado.
Ela não acordaria mais.

Aquela palavra que eu desconhecia, acabei de entender da forma mais dolorosa que um filho pode entender. Ela não desmaiou, ela faleceu!


Moana Mairink Dutra de Souza


sábado, 7 de julho de 2018

DAS PEDRAS - Cora Coralina (Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas)

Ajuntei todas as pedras 
que vieram sobre mim. 
Levantei uma escada muito alta 
e no alto subi. 
Teci um tapete floreado 
e no sonho me perdi. 

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Uma estrada, 
um leito, 
uma casa, 
um companheiro. 
Tudo de pedra. 


Entre pedras 
cresceu a minha poesia. 
Minha vida... 
Quebrando pedras 
e plantando flores. 


Entre pedras que me esmagavam 
Levantei a pedra rude 
dos meus versos.


CORALINA, Cora. Melhores Poemas - seleção Darcy F. Denófrio. São Paulo: Global, 2008, p. 213.

domingo, 16 de abril de 2017

I DREAMED A DREAM - Alain Boublil

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There was a time when men were kind

When their voices were soft
And their words inviting.
There was a time when love was blind
And the world was a song
And the song was exciting.
There was a time ... then it all went wrong

I dreamed a dream in time gone by
When hope was high and life worth living,
I dreamed that love would never die
I dreamed that God would be forgiving.

Then I was young and unafraid,
When dreams were made and used and wasted.
There was no ransom to be paid,
No song unsung, no wine untasted.

But the tigers come at night,
With their voices soft as thunder,
As they tear your hope apart
As they turn your dream to shame

He slept a summer by my side.
He filled my days with endless wonder,
He took my childhood in his stride,
But he was gone when autumn came.

And still I dreamed he'll come to me
That we will live the years together,
But there are dreams that cannot be
And there are storms we cannot weather.

I had a dream my life would be
So different from this hell I'm living
So different now from what it seemed
Now life has killed the dream
I dreamed.


Theme Les Misérables - Alain Boublil

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Entre amigos - Friedrich Nietzsche


 


POSLÚDIO 

1
É belo calar-se juntos,
Mais belo rir juntos,
Sob a ternura de um céu de seda,
Encostados no musgo da faia,
Rir afetuosamente com amigos, riso claro,
E mostrar-se mutuamente dentes brancos.
Se faço bem, calaremos;
Se falo mal – riremos,
E de mais a mais faremos mal,
Mais mal faremos, mais mal riremos,
Tanto que desceremos ao fosso.
Amigo! Sim! Assim deve ser?
Amém! E até logo!
2

Sem desculpa! Sem recusa!
Concordem, alegres homens livres pelo coração,
Com este livro do absurdo
Ouvido e coração e moradia!
Acreditem em mim, meus amigos, não é maldição
Que me deixou assim em meu absurdo!
O que encontro, o que procuro –
Já esteve alguma vez num livro?
Honrem em mim os loucos!
Aprendam deste livro louco
Como a razão evolui – “para o absurdo”!
Meus amigos, assim deve ser?
Amém! E até logo!

NIETZSCHE, Friedrich W.Poslúdio. In Humano, Demasiado Humano.Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2007, p. 303-304.

sexta-feira, 31 de março de 2017

DO SUPÉRFLUO - Henriqueta Lisboa

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Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?


HENRIQUETA LISBOA

Pousada do Ser (1982)